31/10/2011 - Brasileiros ainda adoecem por falta de saneamento básico
31/10/2011
Estudo realizado pelo IBGE mostra
grandes desigualdades entre as regiões brasileiras no acesso ao saneamento.
Nessa situação, persistem doenças como diarreia e febre amarela, decorrentes da
falta de serviços de água tratada e esgoto.
Por Raquel Júnia - Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
Imagine se na sua casa não
chegasse água encanada. Agora, imagine que o esgoto da sua rua corresse a céu
aberto; ou que todo o seu esgoto doméstico e o de seus vizinhos fosse jogado no
córrego mais próximo. Se você é morador de uma das 33 cidades brasileiras que
não contam com abastecimento de água, ou de uma das mais de duas mil onde não
há uma rede coletora de esgoto, sabe que esse cenário vai além da imaginação.
De acordo com o Atlas do Saneamento 2011, divulgado recentemente pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há uma grande desigualdade entre
as regiões do Brasil no quesito saneamento. A partir dos dados da Pesquisa
Nacional de Saneamento Básico (PNSB 2008), o Atlas mostra, por exemplo, que na
região norte do país, apenas 3,5% dos municípios contam com esgotamento
sanitário.
De acordo com o estudo, de 2000 a
2008 as condições de saneamento melhoraram levando-se em conta todo o
território nacional, apesar disso, menos da metade dos domicílios brasileiros
(45,7%) tem acesso à rede de esgoto. "Se a universalização da rede de
abastecimento de água, coleta de esgoto e de manejo de resíduos sólidos
constitui parâmetro mundial de qualidade de vida já alcançado em grande parte
dos países mais ricos, no Brasil a desigualdade verificada no acesso da
população a esses serviços ainda constitui o grande desafio posto ao Estado e à
sociedade em geral nos dias atuais", considera o IBGE, na apresentação do
Atlas.
De acordo com o Atlas, o
saneamento, e mais especificamente o serviço de esgotamento sanitário, avançou
mais onde a população mais cresceu, sobretudo nos grandes centros urbanos.
Ainda assim, caso você seja morador de uma grande capital, mesmo do sudeste - a
região que, segundo o Atlas, é a melhor desenvolvida em termos de saneamento -,
pode ser que a poucos quilômetros de sua casa, você encontre situações visíveis
de problemas nos serviços de esgoto. A menos de um quilômetro de onde esta
reportagem está sendo escrita, no Rio de Janeiro, é possível ver esgoto sendo
escoado em um canal de água, um grave problema, conforme alerta o relatório,
sem contar o uso que essa população faz da própria água contaminada.
O tamanho do desafio
Contaminação das águas e do solo,
adoecimento da população, deslizamentos e inundações: de acordo com o Atlas,
todas essas são consequências da falta de políticas efetivas de saneamento
básico. Mas para entendermos o tamanho do desafio que o Brasil tem nessa área,
é preciso entender o que é saneamento. A professora da Escola Nacional de Saúde
Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Simone Cynamon, define: "As pessoas
confundem o saneamento com os elementos que o compõem, como abastecimento de
água, esgotamento sanitário, coleta de lixo, drenagem pluvial. Tudo isso é a
infraestrutura básica, e todos esses serviços compõem o saneamento. O ser
humano é produtor de resíduos, bebemos água e geramos urina, por exemplo. A
água que consumimos vem do rio, é tratada e chega até nós com um nível certo de
potabilidade. Ao utilizarmos essa água, geramos um resíduo líquido. Então, toda
essa água que descartamos, da cozinha, do banho, é esgoto. O saneamento,
portanto, é essa ciência que trabalha a proteção do ser humano e do meio
ambiente onde ele está inserido. Porque quanto mais se joga resíduo no meio
ambiente, mais ele irá gerar doença no ser humano, é um ciclo vicioso",
explica.
A professora observa que a
preocupação do ser humano com esse cuidado é bastante antiga. "Na
pré-história, só o fato de existirem poços para proteger a água já era uma
medida de saneamento, só que as pessoas não definiam assim. Nos povos da
América, no Peru, por exemplo, havia esquemas de captação de água de chuva,
formas diferentes de lidar com os resíduos. Na Roma antiga, havia aquedutos,
que é uma forma de conduzir a água. Então, o saneamento existia muito antes da
sociedade que conhecemos existir", diz.
A professora ressalta que a
população que não tem saneamento é adoecida. Ela destaca que, no Brasil, de 20%
a 30% das habitações constituem assentamentos urbanos precários, situação
acompanhada de problemas de saneamento. "Há problema de cólera, de
hepatite. Mesmo que o esgotamento seja composto de 20% de matéria sólida e 80%
de matéria líquida, esses 20% servem de matéria para bactérias e vírus se
alimentarem. Há várias doenças de veiculação hídrica gravíssimas, cujo tempo de
latência é de dez a 15 dias, de modo que só se perceberá o adoecimento depois.
A diarreia que adquirimos muitas vezes não tem a ver com a alimentação, como
geralmente se associa, mas é causada justamente por bactérias de água
contaminada. Se você lava a fruta com água contaminada, está ingerindo esta
contaminação", alerta.
O Atlas mostra que a média
brasileira de internações por doenças relacionadas a problemas de saneamento
diminuiu entre 1993 e 2008, passando de cerca de 750 a cada 100 mil habitantes
para cerca de 300. Entretanto, só em 2008, nos estados do Pará e Piauí,
ocorreram de 900 a 1200 internações para cada 100 mil habitantes - os piores
estados brasileiros nesse aspecto, seguidos pelo Maranhão, Rondônia e Paraíba,
com índices de internação entre 600 e 900 para cada 100 mil habitantes. Embora
o quadro geral brasileiro aponte uma queda no percentual de internações por
diarréia, o mapa das mortes por essa doença em 2009, também de acordo com o
Atlas, mostra regiões críticas nos estados do Pará, Bahia, Piauí, Maranhão, nas
fronteiras entre Paraíba e Rio Grande do Norte, e Goiás e Mato Grosso. A
ocorrência de dengue é outro grave problema contido no Atlas. Dessa vez,
estados da região sudeste também aparecem entre aqueles com maior incidência da
doença. O maior número de casos se concentra, em ordem decrescente, nos estados
de Sergipe, Rio de Janeiro, Roraima, Rio Grande do Norte, Tocantins, Espírito
Santo e Goiás. Os estados com menores índices concentram-se no sul do país,
como o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. São Paulo também está os três
estados com mais baixa incidência.
Por que não há saneamento?
O Atlas analisa quatro serviços
constitutivos do saneamento básico, a rede geral de distribuição de água, a
rede coletora de esgoto, manejo de resíduos sólidos e o manejo de águas
pluviais. Em relação à distribuição de água, os dados mostram que é na região
norte que a população recebe mais água sem tratamento - mais de 25% da água
destinada para consumo humano nessa região não é tratada. O abastecimento de
água cobre quase a totalidade do país, 99,4%. "Embora seja evidenciado um
movimento no sentido da universalização do serviço de distribuição de água por
redes de abastecimento, deve-se, contudo, ter em conta que o avanço demonstrado
pelos números não significa o pleno atendimento do serviço à totalidade das
populações residentes nos municípios. A pesquisa considera como servido todo
município que apresenta ao menos um único distrito, total ou parcialmente
contemplado com rede de abastecimento de água, independentemente da eficiência
do serviço prestado e do número de ligações domiciliares à mesma", pondera
o documento do IBGE. Segundo o estudo, existem 33 municípios brasileiros sem
abastecimento total de água, entretanto, há outros 793, grande parte deles na
região nordeste, nos quais o abastecimento é feito de maneira alternativa, por
meio de cisternas ou outros mecanismos.
A coleta de resíduos sólidos, de
acordo com o Atlas, também melhorou, embora a destinação desses materiais
permaneça um desafio. Mais de 50% dos municípios brasileiros ainda recorrem a
lixões para descartarem o lixo, apesar de a Lei Nacional de Resíduos Sólidos,
que vigora desde 2010, preveja que até 2014 todos os lixões do país precisam
ser fechados. Os serviços de manejo de águas fluviais também são mais
estruturados nas regiões sul e sudeste. Neste aspecto, os municípios menores
têm mais deficiências nesse tipo de serviço.
Os dados do Atlas confirmam que a
maior deficiência do país está mesmo no esgotamento sanitário. O chefe do
Departamento de Saúde Ambiental (Desa) da Ensp/Fiocruz, Paulo Barrocas, analisa
por que há pouco investimento nesse tipo de serviço. "A rede de esgoto
está enterrada, então, não é uma obra que todo mundo vê, está debaixo do solo.
Outra questão é que ainda existe um pouco essa mentalidade de que a solução
para a poluição é a diluição, então, eu posso jogar a minha poluição num corpo
d água receptor, aquilo será diluído e irá se resolver o problema simplesmente
diluindo. Só que já está claro, com todas as alterações que nós temos nos
corpos d água receptores, que há uma grande contaminação, e não apenas em
megametrópoles, mas também em cidades de médio e pequeno porte", explica.
A professora Simone critica o
corporativismo que impede que soluções baratas sejam adotadas para resolverem
os problemas de saneamento da população. "Há um corporativismo do cimento,
do tubo PVC. Em países mais pobres se faz inclusive tubulação de rede esgoto de
bambu, basta ter um bom preparo, mas não há interesse em fazer essa tecnologia
de baixo custo", pontua. Para a pesquisadora, isso gera as grandes
desigualdades reveladas no Atlas. "No Nordeste, há água a cem ou 200
metros abaixo da terra, basta escavar e fazer açudes, mas há um conflito de
interesses que impede que isso seja feito. Dá para ter saneamento a baixo
custo, mas outras coisas têm mais visibilidade política. O abastecimento de
água ainda aparece mais, porque dá para fazer uma torre, por exemplo, mas o
esgoto fica escondido, então não gera votos. Esse Atlas reflete a falta de
políticas sociais", analisa.
Estações de tratamento não estão
preparadas para retirarem novos resíduos
Paulo Barrocas alerta para um
grave problema a ser enfrentado nas próximas décadas: o da qualidade da água.
"Não é que a água irá desaparecer, mas se a qualidade dos nossos cursos d
água ficar muito ruim. Primeiro será muito caro tratar essa água porque ela
estará muito contaminada, exigirá uma série de tratamentos mais caros.Segundo,
pode chegar a um ponto que se torne inviável consumi-la", complementa. Ele
diz que há hoje a contaminação da água por novos compostos, cientificamente
chamados de xenobióticos, ou seja, substâncias sintéticas, que não são
encontradas na natureza, mas produzidas em laboratório. O pesquisador explica
que a grande dificuldade é que as estações de tratamento não estão preparadas
para despoluírem a água e o esgoto desses tipos de substâncias.
"São contaminantes sobre os
quais não se conhecia muito. O que se espera tradicionalmente de uma estação de
tratamento doméstico é que ela tire matéria orgânica, carbono, nitrogênio,
fósforo. Na estação de tratamento de efluentes industriais, isso vai depender do
processo industrial. Por exemplo, se é um processo de uma indústria
metalúrgica, que trabalhe com metais, será necessário algum processo químico de
remoção dos metais, e esses são processos específicos. As estações
convencionais de tratamento de água não foram pensadas para tirar, por exemplo,
os hormônios - que são exemplos de xenobióticos -, que cada vez mais são
lançados ", detalha.
O professor diz que se não houver
procedimentos específicos para removê-los, esses materiais permanecem na água.
"Esses produtos decorrem de uma série de atividades industriais,
principalmente da petroquímica. São principalmente compostos orgânicos, como o
bisfenol, que está no produto das mamadeiras. Os agrotóxicos também entram aí.
Esses aditivos químicos que utilizamos muito nos alimentos industrializados
para terem um aroma, um gosto e uma cor, também. E muitos desses aditivos podem
desencadear alergias, principalmente em crianças que têm um sistema imunológico
que ainda está sendo desenvolvido. Uma série dessas substâncias sintéticas é
lançada no ambiente sem que tenhamos uma certeza absoluta de todo o dano que
elas podem causar", alerta. Para o pesquisador, a solução é evitar que
esses produtos sejam lançados no meio ambiente, pensando em modificações nos
modelos de produção e consumo.
Problemas de saneamento e
problemas sociais
Paulo Barrocas destaca que as
regiões com os piores índices de saneamento são também aquelas nas quais outros
direitos fundamentais são precários. Ele comenta sobre como as populações,
dependendo do nível de renda e poder, são atingidas desigualmente pelas falhas
de políticas públicas de saneamento. "Não se constrói aterro sanitário no
Leblon [bairro da zona sul do Rio de Janeiro], se construirá em um local onde
as pessoas não conseguem se mobilizar, porque ninguém quer ter um aterro perto
de casa. A capacidade de mobilização e de influência dos diferentes grupos da
sociedade está diretamente relacionada com o poder socioeconômico que elas
têm.Eentão, às pessoas que tem menos poder, será imposto um maior peso pelos
desastres ambientais", compara.
O pesquisador destaca que,
entretanto, as condições de saneamento podem afetar todas as pessoas, mesmo em
regiões distantes, tanto no interior quanto nas capitais. "Aqui no Rio de
Janeiro, por exemplo, captamos água para consumo do rio Guandu. Uma cidade
pequenininha pode estar contaminando o rio lá em cima e depois, nós aqui da
cidade grande, vamos captar a água para beber. Às vezes a causa de um problema
está em um lugar específico, mas as consequências do problema são deslocadas no
tempo e no espaço. É difícil caracterizar as consequências de uma contaminação,
porque às vezes aquilo irá acontecer 20 anos depois, ou dez quilômetros abaixo.
Não tem como fazer uma fronteira e dizer: ‘olha, o vento não pode passar daqui
para lá. Os problemas ambientais, pela sua própria natureza, não respeitam
limites políticos, geográficos, por isso necessitam sempre de uma ação
conjunta", destaca.
O Atlas mostrou que as condições
de saneamento melhoraram mais nas grandes capitais do que no interior. Para a
professora Simone Cynamon, a questão do saneamento deve ser pensada a partir de
bacias hidrográficas. "O nosso território é amplamente hídrico, então,
essa questão de responsabilidades não pode ser dividida exatamente entre estados,
municípios e federação. Como o saneamento não pode ser localizado, ele deve ser
pensado na bacia hidrográfica como um todo", opina. O Altas também
apresenta um estudo relacionando o saneamento às bacias hidrográficas. Em um
dos mapas aparecem os locais onde há mais ameaça de poluição aos recursos
hídricos, principalmente com o lançamento de esgoto. Há muitas ameaças
detectadas em todo o território brasileiro, mas as regiões com maiores
problemas são as litorâneas, com destaque para o Nordeste e o Sudeste.
Legislação
Apenas recentemente o Brasil
elaborou duas legislações para abordar o problema dos resíduos sólidos e do
saneamento como um todo. A Lei nº 11.445/2007 , regulamentada pelo Decreto nº
7.217/2010 estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico no País. Já
a Política Nacional de Resíduos Sólidos foi instituída pela lei 12.305/2010 .
"É preciso que todos os entes federados participem para que essas
políticas sejam implementadas. Na questão dos resíduos sólidos, a sociedade também
é um dos atores que estão previstos naquela política. Então, sem a política não
se tem nada, mas é preciso tirar essa letra do papel e aí depende da
mobilização da sociedade e do interesse dos governantes", avalia Paulo
Barrocas.
A Secretaria Nacional de Saneamento
Ambiental (SNSA), ligada ao Ministério das Cidades, está elaborando um Plano
Nacional de Saneamento Básico (PlanSab) , conforme determina a lei 11.445. De
acordo com a página eletrônica da Secretaria, o plano "será um instrumento
fundamental para a retomada da capacidade orientadora do Estado na condução da
política pública de saneamento básico e, consequentemente, da definição das
metas e estratégias de governo para o setor no horizonte dos próximos vinte
anos, com vistas à universalização do acesso aos serviços de saneamento básico
como um direito social, contemplando os componentes de abastecimento de água
potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, e
drenagem e manejo das águas pluviais urbanas". A SNSA foi procurada pela
reportagem para comentar os dados divulgados no Atlas do Saneamento 2011, mas
respondeu, por meio da assessoria de imprensa, que ainda não havia concluído a
análise dos resultados e que se pronunciará posteriormente. "Apesar de o
saneamento como política pública remontar à década de 1930, quiçá ao século
XIX, a dívida social com grande parte da população persiste enquanto um fato
permanente na sociedade brasileira, constituindo um desafio a ser transposto em
curto e médio prazos pelo Estado e pela sociedade em geral", conclui o
Atlas de Saneamento 2011.
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